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O verdadeiro escândalo não é só do Facebook

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Embora o Facebook tenha se tornado o pilar central do escândalo envolvendo a empresa britânica Cambridge Analytica, que recebeu um repasse irregular de informações, a rede social de Mark Zuckerberg é na verdade uma pequena peça na engrenagem da cultura da publicidade da web e da mania por informação. E esta "instituição" tecnológica, compartilhada por todas as empresas do ramo, nada fez de diferente além de aprimorar conceitos aplicados há pelo menos duas décadas. O que mudou é que, dessa vez, o conceito foi levado ao marketing político.

Proponho um desafio: tente encontrar um telefone para entrar em contato com uma das grandes empresas de internet. Pode ser o Faceboook, mas Google também serve. Pode tentar verificar o mesmo para os desenvolvedores de aplicativos populares -- pode ser o WhatsApp, o Uber, o SnapChat, até o Tinder. Você vai descobrir que a grande exceção à regra é a Microsoft -- mas a Microsoft nasceu como uma empresa de software antes da internet (na Microsoft, não é impossível conseguir chat de suporte para serviços gratuitos, como o OneNote; para produtos pagos, como o Office, ou o G Suite do Google, existe suporte telefônico).

Repare, inclusive, que, se por ventura você conseguir uma mensagem de resposta por e-mail, ela provavelmente não será assinada. É como se todas as decisões fossem tomadas por um sistema, e não por pessoas.

Uma possível justificativa para essa aversão a uma conversa telefônica ou até bate-papo para resolver problemas está na mentalidade dessas empresas, que tratam o contato humano como um retrocesso. Afinal, se você é uma empresa de tecnologia e internet, sua missão deve ser levar a informação que uma pessoa precisa até ela. Colocar um humano para intermediar o processo de encontrar é como admitir o fracasso.

Pela mesma lógica, se você vai usar computadores para entender as pessoas, precisa moldar as pessoas em termos que os computadores entendam. Ou seja, números. Não trata-se apenas da publicidade: o Uber também precisa disso para melhorar as rotas e seus carros autônomos, o Tinder precisa disso para melhorar as sugestões (ou até criar um canal VIP para celebridades).

Isso cria um ciclo retroalimentado: o comportamento das pessoas é estudado para moldar a plataforma, mas a plataforma também molda o comportamento dos usuários, que voltam a moldar a plataforma.

Não é à toa que todas as plataformas de redes sociais são vulneráveis a ataques de "denúncia em massa", em que um grupo organizado de usuários denuncia um conteúdo como impróprio até que ele saia do ar, prejudicando a reputação da vítima. Desfazer o equívoco pode levar horas ou dias, até que um humano enfim se dedique a analisar o conteúdo das denúncias -- ou seja, até que a ditadura dos números enfim dê lugar a um ser pensante (isso aconteceu, por exemplo, com a youtuber Jout Jout;).

Criadores de conteúdo no YouTube também sofrem com isso, já que as decisões "do Google" sobre qual vídeo será monetizado para continuar recebendo anúncios publicitários não parecem fazer muito sentido. O Google fez ajustes nesse algoritmo após jornais denunciantes a presença de anúncios de grandes empresas ao lado de vídeos com conteúdo de ódio e até terrorismo. O caso é referido na comunidade no YouTube como adpocalypse" (uma junção de "ad", publicidade, com apocalipse, em inglês).


Dificilmente se consegue falar com humanos e obter respostas claras para entender exatamente por que acontece, qual política do YouTube foi violada, enfim.

O mesmo ocorre com quem perde suas contas por alguma violação da política. Perder a conta pode implicar em dificuldades para acessar diversos serviços vinculados. Foi exatamente isso que aconteceu com o especialista em segurança Ivan Carlos em dezembro de 2016. O Google enviou uma notificação para o e-mail de recuperação da conta dele para avisar que a conta principal havia sido desativada.

"Eu segui o processo normal, preenchendo o formulário de apelação da desativação. Porém, recebi uma resposta informando que minha conta não seria reativada, e nenhuma justificativa foi dada", conta o especialista. Ele disse que isso aconteceu duas vezes com ele -- na primeira vez, conseguiu reativar. Na segunda, nada feito. Em nenhum momento ele conseguiu um contato telefônico com a empresa, e acabou perdendo suas compras no Google Play e um canal do YouTube chamado "GamePad", que ele teve que recomeçar do zero.

Recentemente ouvi também a história de um amigo que só recuperou a conta no Instagram quando enfim conseguiu um contato interno na empresa. Pelos mecanismos disponíveis ao público, sua conta estaria perdida para sempre.

Para essas empresas, casos como este são estatística -- uma estatística respeitável, inclusive (os algoritmos são eficazes e erram "pouco"). Mas, para quem está praticamente perdendo sua vida digital, ser a minoria não faz diferença. Quem trata seus usuários como números a serem mastigados pelo processamento digital não consegue enxergar o peso de perder informações -- não importa quantos milhões estejam envolvidos.

Afinal, os 50 milhões que perderam seus dados são só 2% dos usuários do Facebook. É provável que alguém no Facebook esteja se fazendo exatamente essa pergunta: "por que um caso que só envolveu 2% da base está causando tudo isso?"


Anúncios direcionados, só que na política
Desde que a web existe, empresas têm buscado meios de agrupar internautas em categorias, entender hábitos e traçar perfis. A tendência explodiu no início dos anos 2000, quando empresas inescrupulosas desenvolveram programas que monitoravam toda a navegação dos internautas. Não muito diferente da situação de hoje, esses programas eram oferecidos como "patrocinadores" de aplicativos gratuitos.

Diversos especialistas em privacidade alertaram para os riscos desse tipo de prática, mas empresas prometeram usar dados "agregados" e a disciplina se profissionalizou. No fim, entrou para a paisagem natural da internet.

O diferencial da Cambridge Analytica foi tomar essa disciplina já aperfeiçoada ao longo dos anos e aplicar para o campo político. 

Nem mesmo a aparente falta de ética da empresa chega a ser novidade. Para aumentar a receita -- um desafio real --, a publicidade na web opera com preços baixos e leilões quase que instantâneos, permitindo que peças de pouca credibilidade cheguem a muitas pessoas. 

Sim, é verdade que o Facebook foi descuidado no caso da Cambridge Analytica. Sim, é verdade que exigir "prova de destruição de dados" como o Facebook fez e acreditar na referida "prova" foi uma atitude totalmente risível (não existe um meio para determinar que todas as cópias de uma determinada informação foram apagadas). Mas, deixando isso de lado, não há mais nada nesse escândalo. São só "empresas de internet" fazendo o que a internet sempre fez de melhor: tratar pessoas como perfis de informação.

Nada, claro, existe por acaso: é esse tipo de prática que permite a existência de todos os serviços gratuitos da web. Portanto, é fato que ganhamos algo em troca. O verdadeiro escândalo é que deixamos tudo isso ser construído sem nunca perguntar de verdade se era isso que queríamos.