Bitcoin, uma moeda digital que vale 43 bilhões de dólares, entrou em território inexplorado e possivelmente perigoso após uma divisa ter gerado duas versões da moeda nesta terça: o Bitcoin original, surgido em 2008, e o novo Bitcoin Cash, que almeja ser uma alternativa populista.
A separação se deu quando um grupo de usuários revoltosos levaram adiante um "hard fork" – evento inédito na história da moeda e que boa parte da comunidade tentou inventar ao longo de dois anos.
O marco do hard fork se deu pela criação de um bloco inaugural de dados transacionais de Bitcoin Cash. Este possui quase dois megabytes de tamanho em comparação ao único mega do Bitcoin, o que constitui a principal diferença entre as duas moedas virtuais.
Agora temos no mercado duas versões quase idênticas do Bitcoin, cada uma com suas regras e apoiadores ferrenhos. Todos os detentores de Bitcoin receberam automaticamente o mesmo valor em Bitcoin Cash e esta moeda recém-chegada terá que dar duro para se manter de pé.
O preço do Bitcoin caiu quase 200 dólares para US$2.700,00 por moeda pouco antes da divisão, mas até a publicação desta matéria, a moeda parecia retomar seu ritmo. O Bitcoin Cash, por sua vez, é extremamente volátil, mas dá sinais de vida. Antes de sua criação, com o bloco inaugural, o popular câmbio de criptomoedas Kraken deu créditos desta moeda aos seus clientes e possibilitou operações, basicamente distribuindo promissórias. Em cerca de 10 minutos de operação, o preço imaginário do Bitcoin Cash despencou de 400 para 140 dólares. Parecia que as coisas estavam ruins, mas imediatamente após a divisão, o preço voltou a US$ 200.
O sucesso ou fracasso do Bitcoin Cash está nas mãos de seus "mineradores", que usam servidores para criar blocos e assim sustentar a rede de blockchains. No momento não está claro quantos mineradores adotaram a nova moeda, mas parece ter sido apenas uma fração. Durante o tempo que os mineradores de Bitcoin Cash levaram para criar um único bloco de dados transacionais, o Bitcoin original criou dezenas, o que pode ser encarado como sinal de que o Bitcoin Cash ainda não tem força para fazer frente ao Bitcoin.
A cisão é uma reviravolta de última hora em uma discussão que ao longo de dois anos transformou a comunidade Bitcoin em um campo minado. A "guerra civil", como alguns se referem ao evento, se dava em torno de como melhorar o Bitcoin para que mais pessoas pudessem usar a plataforma sem deixá-la mais lenta.
Ao final de 2016, os "blocos" de informações transacionais que formam o livro-razão do Bitcoin, chamado blockchain, estavam lotados. Isso resultou em transações levando dias ou horas para serem processadas em um bloco. Pense no tempo que leva para uma compra no débito no mercadinho da esquina ser aprovada – pode parecer uma eternidade, mas quando falamos de Bitcoin a coisa pode ficar bem mais feia.
Havia como dar um jeito nisso caso você tivesse grana, porém: incluir uma "taxa" alta à sua transação em Bitcoin para que um minerador a inserisse no bloco seguinte. Isso não pode parecer nada de mais para as várias instituições financeiras poderosas de olho no Bitcoin. Essa galera tem como pagar, mas a situação é bem mais complicada para pessoas que querem usar a moeda digital para gastos cotidianos como um cafezinho.
Após longo período de discussão, o desenvolvedor de Bitcoin Pieter Wuille propôs uma regra conhecida como "Segregated Witness", ou segwit, que liberaria espaço nos blocos de um megabyte da moeda – mas não muito. Mesmo assim, boa parte da comunidade aceitou a ideia.
Após bem-sucedida campanha de usuários em julho com o objetivo de forçar mineradores a aceitarem o segwit, a rede se preparou para um "soft fork" em 1º de agosto. Soft fork é o nome que se dá às alterações nas regras de funcionamento da moeda sem divisão da rede, mas exige que todos estejam de acordo. Naquela ocasião, nem todos os mineradores apoiavam as mudanças. A empresa de Bitcoin chinesa Bitmain então criou uma divisão, um "hard fork", como um plano de contingência.
Embora este plano fosse hipotético, acabou dividindo o Bitcoin em duas versões na tarde desta terça.
A divisão passou de um mero plano de contingência a um plano principal. O batismo do Bitcoin Cash se deu por um grupo de usuários e desenvolvedores que acreditavam que o segwit não aumentava o número dos blocos de Bitcoin de maneira satisfatória. O "cash" no nome tem como objetivo enfatizar que esta versão é para uso comum, não só para instituições financeiras ou grandes empresas.
É no mínimo tentador encarar o Bitcoin Cash e a divisão como absurdos, mas analisando com mais calma, trata-se na verdade de um impulso que está no DNA da moeda desde o princípio.
O que mantém o Bitcoin de pé não são linhas de código e muitos menos dinheiro: é uma crença. O protocolo bitcoin, na época de seu lançamento por um grupo ou indivíduo anônimo sob o pseudônimo Satoshi Nakamoto há quase dez anos, era petulante e contra a maré. O Bitcoin acusou bancos e reguladoras de golpistas e os derrotou no seu próprio jogo com uma moeda que se tornou tão "real" quanto as verdinhas que vemos por aí, mesmo se tratando de uma abstração criada com matemática e computadores. É uma baita de uma piada ecoando uma política libertária que atrai fiéis.
Se podemos atribuir essa divisão a algo, certamente é o próprio impulso anti-autoritário do Bitcoin. Isso e aquele instinto de jogador que leva as pessoas a depositarem milhões de dólares em uma moeda inventada.